Jorge Sales, o denodado orientador da instituição espírita, encontrava-se no habitual entendimento com Anatólio, o mentor desencarnado, através do médium. As tarefas da noite haviam praticamente chegado ao fim, mas Jorge sentia-se necessitado de instrução e por isso dilatava a palestra, ao pé dos amigos, a constituírem o círculo de oração. — Os obsidiados crescem de número — dizia Sales, preocupado —, e precisamos antepor providências... — Sim — concordava o amigo espiritual —, é necessário estender o clima da serenidade e do trabalho, do entendimento e da prece... E a conversação avançou: — São lutas morais por toda parte... Jovens mal saídos da infância caem perturbados, de momento para outro... Velhinhos, na derradeira quadra da existência, enlouquecem de súbito... Tem havido suicídios, crimes... O benfeitor consolava, pelo médium falante: — Sim, meu amigo, toda paciência é pouca a fim de vencermos com segurança... Saibamos servir a todos, com muita compreensão da fraternidade... — Tudo indica estarmos aqui sob a influência do velho comendador Antônio Paulo da Silveira Neves, que foi fazendeiro na região e está desencarnado há oitenta anos. Silveira Neves foi homem terrível... Consultei documentos na municipalidade e tenho ouvido pessoas da zona, cujos ascendentes lhe comungaram a intimidade... Possuía escravos em legião e, entre eles, era conhecido por flagelo de todos... Sustentava capatazes ferozes e comandava, ele próprio, o sofrimento dos cativos, que, às vezes eram chicoteados até a morte... Não só isso. Colocava os sitiantes daqui uns contra os outros, provocando assassínios e ódios que até hoje persistem... Estou certo de que essa teia de obsessões e vinganças nasce da atração do velho comendador... Ele deve ser a causa inicial de tudo... — Muito ponderada a sua palavra... — O irmão conhece o infeliz? — Sim, conheço... — Tenho o máximo interesse em evocá-lo... — Não acho prudente. — Ora! São muitos os Espíritos rebeldes evidentemente vinculados a ele... Topo vários, a cada semana... Uns se declaram vítimas do comendador, muitos acusam o comendador e outros ainda prometem que não haverá mudança aqui, enquanto não liquidarem o comendador... Tenho assentado que, apesar de haver transcorrido muito tempo, é indispensável nos disponhamos a doutrinar esse Espírito. Sem esse contacto, ao que julgo, será muito difícil a modificação para melhor, de que estamos necessitados... — Entendo o que diz — tornou Anatólio —, mas não faça a evocação. Seria de todo inoportuna... — Mas escute, meu amigo! Eu também pareço sofrer a influência dessa poderosa entidade... As referências ao comendador desabam sobre mim como choques elétricos. Só em ouvir-lhe o nome, sinto-me mal... Imagine que já fui orar por ele, no próprio túmulo em que lhe sepultaram o corpo, tão impressionado vivo eu... Creio que se orássemos, chamando-o ao aparelho mediúnico... — Mas não convém... — Insistiria, no entanto... Um entendimento direto, entre esse Espírito perseguidor e nós, talvez desse bom resultado... — A medida é desaconselhável. — Será que Silveira Neves desencarnado está em plano superior, embora as atrocidades que cometeu? — Ainda não... O ex-comendador vive em luta consigo mesmo... — Então? Trazê-lo ao esclarecimento seria caridade... — Isso, entretanto não deve ser tentado. — Meu amigo, por que a recusa, se o Espírito dele está em provas, segundo a sua própria informação? — Apesar de tudo — replicou o benfeitor —, a evocação não deve ser praticada... O interlocutor, porém, não obstante respeitoso, perguntou semi-exasperado: — Mas por quê? Vendo que o instrutor silenciava, discreto, repetiu: — Diga! Diga, por quê?!... Foi aí que Anatólio mudou o tom de voz e falou muito sereno: — Jorge, meu amigo, a evocação não deve ser feita porque o ex-comendador Antônio Paulo da Silveira Neves é você mesmo... reencarnado. |
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